ISTOÉ – julho 30 2021

Órfãos da pandemia

Por que estamos aqui? Onde está a minha avó? O que aconteceu com ela? Essas foram as primeiras perguntas sussurradas entre lágrimas por Maria, 4, e sua irmã Camila, 7, quando perceberam que a única pessoa que cuidava delas, a avó, “havia desaparecido”. A idosa não resistiu à Covid-19 e as meninas, cujos nomes são fictícios, vivem atualmente em uma Casa Lar da Aldeias Infantis SOS, em São Paulo, em acolhimento provisório

 

Na Casa Lar, as irmãs que perderam a avó: aprendendo a lidar com o luto (Crédito: Anna Carolina Negri)

 

O caso dessas duas meninas é o mesmo de 1,5 milhão de crianças e adolescentes em todo o mundo. No Brasil, o coronavírus também matou os principais personagens de diversas famílias, pai, mãe ou avós e, de uma hora para outra, 130 mil menores ficaram órfãos. A pesquisa que calculou a quantidade de órfãos da pandemia foi um trabalho internacional de acadêmicos dos EUA, África do Sul, Dinamarca e do Reino Unido. O método utilizado foi o mesmo desenvolvido pelo grupo de estimativas e projeções do programa da Organização das Nações Unidas para o combate à AIDS (Unaids). Os números da mortalidade de adultos pela Covid-19 embasaram a pesquisa em 21 países que somam 77% do total de óbitos globalmente e o período observado foi entre março de 2020 e abril de 2021.

No momento, o que se pode afirmar é que o coronavírus ocasionou situações tocantes e de vulnerabilidade como as de Maria e Camila. E, se não fosse o auxílio da Casa Lar da Aldeias Infantis SOS, teriam destino incerto. Há um mês, as meninas dividem a casa que comporta até 10 menores, com outros 5 irmãos sociais de 0 a 18 anos, que também perderam pessoas que representavam o alicerce familiar ou que passaram por uma situação de violação de direito. “As outras crianças que vivem aqui passaram por um contexto de desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente” diz Adriana Barros Pereira, Coordenadora do Acolhimento em Aldeias Infantis SOS no Brasil. A intenção não é transformar o local no lar definitivo das irmãs, explica, mas, por enquanto, elas terão os cuidados necessários para superar esse momento traumático. Pereira conta ainda que, a comunicativa Camila demonstra preocupação com a tímida Maria e ajuda a mais nova a compreender o que aconteceu. “É um trabalho de formiguinha”. Desde que chegaram ao novo lar, aos poucos, as meninas se adequaram à nova condição.

Tami López, especialista em Programação Neurolinguística da Vertta Desenvolvimento Humano, afirma que em uma conjuntura como essa imposta pela pandemia, o impacto não é o mesmo em todas as crianças e a forma como os pequenos vão lidar com a perda de uma pessoa que era um referencial, vai depender de como os adultos ao seu redor vão encarar o luto e lhe transmitir o fato. “A morte faz parte da vida, mas para a criança, o assunto deve ser suavizado”, afirma. A especialista pontua que a infância é permeada por aspectos lúdicos e, então, essa é a melhor forma de dar um significado para essa nova realidade.

Elucidar a morte de alguém tão querido as crianças realmente é algo difícil, ainda mais quando a perda também envolve a dependência financeira e a perspectiva de um futuro confortável muda. “Ele era o provedor da família”, diz Eliana Cardoso Reis, 39, que perdeu o marido, o caminhoneiro Marcelino José de Sousa há três meses para a Covid-19. “Ele faria aniversário em 23 de julho”, conta. Mesmo não sendo pai biológico dos três filhos de Eliana (Estefhanny, Jhennyfer e Arthur), o afeto era mútuo. “Perdemos o nosso último pai”, afirmou desolado Arthur, ao saber do falecimento de Marcelino.

O drama tem grande relevância no mundo. Segundo o estudo da The Lancet, a nação que teve o maior número de órfãos foi o Peru, onde uma a cada 100 crianças perdeu um responsável direto, logo depois, a África do Sul, com cinco órfãos a cada um mil crianças ou adolescentes, e, no México, três a cada um mil jovem perdeu pelo menos um desses parentes. Como o estudo é recente, não foi, por enquanto, incorporado pelo sistema nacional de contagem de órfãos nestes países. Porém, deve ser levado em consideração a partir de um fato concreto, a mortandade causada pela pandemia. A pesquisadora-chefe, Susan Hillis, que estuda enfermidades infecciosas no Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos disse, em entrevista recente, que se uma pessoa contar até 12, é tempo suficiente para que surja um novo órfão no mundo.

Matéria publicada pela Istoé