“Meu maior sonho é erradicar de vez o trabalho da vida da criança”

Jovem dá exemplo de protagonismo em caravana pelos direitos da criança e do adolescente no país.

                                                      
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Quando chega o verão, quase não sobra espaço nas areias das praias do município de Aquiraz, litoral do Ceará. Caixas de som debaixo dos guarda-sóis amplificam os hits da estação, entre o falatório dos turistas e o reconfortante barulho do mar.

Entretanto, é nesse ambiente de lazer que crianças e adolescentes circulam para vender comidas e bebidas o dia todo para ampliar a renda familiar. “Aqui, quase todos vendem coisas na praia. Isso me incomoda porque sei que várias deixam de ir à escola”, conta o jovem de 15 anos, Felipe Caetano.

Além de  morador da região ele é coordenador do Comitê Nacional de Jovens pela Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (Conapeti), coletivo que liderou durante oito meses uma caravana que denunciou entre outros temas, o trabalho precoce em todo o país.

Incômodo com a situação
Mas, antes de falar sobre esse protagonismo é preciso voltar no tempo e contar como tudo isso começou na vida de Felipe. Com apenas nove anos, ele percebeu que havia algo de errado com as crianças que encontrava na praia ou pelas ruas vendendo produtos.

“Quando ia para algumas cidades do interior, via pelas estradas crianças com aquele olhar cansado, triste... por lá, o trabalho chega a ser ainda mais puxado, pois estamos falando do roçado. Várias vezes já tive vontade de pedir para parar o carro e tirar aquela criança dali”, lembra.

Filho da dona de casa Fabiana e do comerciante Francisco, Felipe também ficava impressionado quando assistia a reportagens sobre crianças africanas que morriam porque não tinham o que comer. “Era bem pequeno, mas saía perguntando: Por que há tantas pessoas com comida de sobra e deixam estragar? Por que essas crianças passam fome e não vão à escola? Ficava triste, sem respostas”, recorda-se.

“Conversava com meus pais sobre a possibilidade de um mundo mais justo. E entendi que precisava colaborar para isso e que todos precisam fazer algo. Eles me criaram com muito amor, sabe?”

Pais fazem a diferença
Encorajado pelos pais, com 11 anos, o garoto passou a se interessar mais e começou a participar de seminários sobre direitos humanos em sua escola e em outras instituições. Foi em uma dessas oportunidades que ele se perguntou: “como posso fazer a diferença na vida dos jovens aqui no Ceará”?

A resposta veio em dois momentos. O primeiro, ao ler um pensamento de Gandhi, indiano reconhecido como grande líder da paz mundial, no qual o jovem se inspira: “seja a mudança que você quer ver no mundo”.

O segundo foi o encontro com o procurador Antonio de Oliveira Lima, do Ministério Público do Trabalho do Ceará (MPT-CE). Ao participar das oficinas oferecidas pelo projeto MPT na Escola, Felipe conheceu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e decidiu arregaçar as mangas. “Foi um divisor de águas para mim”.

Entusiasmado, Caetano, então, bateu à porta do procurador para perguntar como poderia, efetivamente, atuar e levar a voz de seus pares para os adultos. O encontro rendeu a criação do Comitê de Adolescentes na Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (Canpeti), estruturado para ser um grande fórum de debates.

Atualmente, o grupo é formado por 40 jovens do Ceará. “Em minha opinião, a participação da juventude é urgente. A partir do momento em que o jovem decide fazer parte da criação e implementação de políticas públicas, ele se torna conhecedor dos seus direitos e passa a reivindicar por eles”, explica.

Ao completar 14 anos, Felipe se tornou coordenador do Núcleo de Cidadania dos Adolescentes (NUCA) do Ceará - projeto que leva o selo UNICEF - que ficou ativo de 2013 a 2016. Com essa ferramenta, o adolescente colocou em prática a ideia de debater direitos humanos com outros jovens.

“O núcleo se tornou uma família para nós. Decidimos continuar fortalecendo essa rede de participação. Nós temos casos de pessoas que saíram do mundo das drogas por conta das conversas que eram realizadas naquele espaço”, lembra.

Mesmo com o fim do NUCA, a juventude da região se manteve reunida, garantiu Felipe: “Levantamos essa bandeira de participação e debate para a roda de conversa dos adolescentes. Isso é sensacional! Veja só: antes, eu sentia uma limitação. Sentia que os próprios jovens não estavam querendo falar sobre direitos que são deles e que eles precisam garantir”.

Protagonismo jovem
No final de 2016, os jovens se organizaram e ajudaram a criar o Comitê Estadual de Adolescentes e Jovens na Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil no Ceará (Ceapeti-CE), através do Programa de Educação contra a Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Peteca), em parceria com os órgãos e entidades da rede de proteção.

Logo, o projeto foi ampliado nacionalmente e em setembro de 2017 nasceu o Conapeti com representantes e comitês locais. Foram eleitos Felipe Caetano, do Ceará, Thiago Silva, de Santa Catarina, Lara Sardenberg, do Espírito Santo e Érick Oliveira, do Rio Grande do Sul e Davida Albuquerque, de Alagoas.

“Foi nesse momento que percebi o que era democracia”, lembrou Felipe.

Cenários da infância e adolescência
Em janeiro de 2018, os representantes do Conapeti resolveram que era hora de agir e definiram uma agenda: viajar pelas diferentes regiões do Brasil durante oito meses, com a missão de dialogar com a juventude e instituições para a articulação de redes regionais de proteção, através da realização de encontros, troca de informações e realização de debates sobre diferentes temas.  

Mas, nem tudo foi apenas mobilização. Ao percorrerem as cidades, se depararam com diferentes realidades.

No Norte, eles ouviram de crianças e jovens sobre a exploração sexual. Lá, isso ocorre principalmente durante o fluxo de balsas que levam caminhões de áreas urbanas para comunidades ribeirinhas. A caravana trouxe à tona a questão durante debates e rodas de conversa em cinco municípios e nas escolas da rede estadual de ensino.

O Nordeste é considerado o local onde mais se explora a mão de obra infantil no país. Lá, os jovens puderam verificar que a pobreza de boa parte de seus moradores empurra os menores para o trabalho. “Nós trabalhamos a questão da conscientização. Acreditamos que o conhecimento profundo dos próprios direitos, assegurados pela Constituição e pelo ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, tornarão crianças e adolescentes mais conscientes e resistentes a situações de exploração”, conta Felipe Caetano.

Já no Sudeste, a caravana se deparou com uma triste realidade: crianças e adolescentes que trabalham com limpeza em casas de família de classe média. Por isso, o grupo foi mais afundo no debate e em ações e se reuniu com representantes de fóruns estaduais, Ministério Público do Trabalho, Comitês, Conselhos, organizações não governamentais para cobrar iniciativas que possam mudar esse quadro nos municípios.

No Sul, segundo o IBGE, crianças e adolescentes são empregadas no plantio de milho, café, batata e fumo, além da indústria madeireira e química. “Por lá nos unimos para realizar rodas de conversas com o público jovem, bem como visitas a instituições. Conversamos de igual para igual e isso fez com que nossa voz ecoasse mais forte. Agora, jovens, adolescentes e crianças vão conseguir entender que existem soluções para o seu futuro”, afirma uma das representantes do Conapeti, Davida Albuquerque.

Muitos são os abusos que assolam as crianças e adolescentes no seu cotidiano e talvez o mais triste, ainda hoje, seja a vigência do trabalho infantil que rouba as horas de brincadeira, convivência e aprendizagem de muitos dos pequenos marcando sua saúde física, emocional e também sua trajetória.

“Nos preocupamos bastante com a situação deles, pois estão vulneráveis, não há quem fale por eles. Então vamos lançar um livro contando o que vimos durante nossas viagens e também os detalhes das conversas, criação de grupos e mobilização”, aponta Felipe Caetano.

O livro ainda não tem data para ser lançado, mas receberá o apoio da Aldeias Infantis SOS Brasil. “Em nossa passagem por São Paulo, conversamos com a SOS, que irá nos orientar em todo esse trabalho. Meu maior sonho com tudo isso é erradicar de vez o trabalho infantil da vida das crianças”, finaliza Caetano.